«Poeta que encontrou nos temas tradicionais do amor e da saudade os motivos quase exclusivos da sua lírica, esse singular Guilherme de Faria, tão precocemente acordado para a vida, como prematuramente dela evadido, segundo me informaram, por um suicídio de amor. A sua sinceridade não precisava de que tão fúnebre selo a garantisse. É ela que dá ao seu livro o poder insinuante da sua tristeza e o feiticeiro encanto daquela saudade em que se projetam místicas felicidades transcendentes, “Lembranças de não sei onde,/ Saudades de não sei quando”. Notas como esta, de uma vida interior removida de angústias assim vagas, são no poeta espontâneas, como florescência hibernal de valezinho virginal fechado, onde são curtas e raras as horas de sol, demorada a luz dos astros noturnos e infinitamente mais altos» [Hernâni Cidade, Tendências do Lirismo Contemporâneo, Lisboa, Livraria Portugália, 1939, p. 63].
Guilherme de Faria nasceu no dia 6 de outubro de 1907, em Guimarães [no Largo de S. Francisco, freguesia de S. Sebastião]. Foi o quinto filho de António Baptista Leite de Faria e de Lúcia Eduarda Pessanha de Sequeira Braga.
Guilherme de Faria foi baptizado no dia 13 de outubro de 1907, na Igreja Paroquial de S. Sebastião.
A sua infância é passada em Guimarães. Para além de algumas fotografias, resta-nos uma interessante descrição do P. José Carlos Simões, jesuíta que foi seu professor na Escola Académica: Guilherme era um rapaz «mexido e turbulento, de corpo franzino, olhos vivos e ardentes, ligeiramente estrábicos, que varavam, através dos vidros duns grandes óculos, a alma das pessoas, procurando penetrar no íntimo de cada um».
A família vivia, então, no n.º 145 da Rua de Santo António, quase em frente ao edifício onde estava instalada a Escola Académica. Guilherme, «quando encontrava uma aberta na vigilância da mãe, fugia da casa dos pais para a convivência com os padres da Escola. […] Aí se matriculou depois, na Instrução Primária, onde já frequentavam o curso liceal os seus irmãos mais velhos». Mas, como realça o P. José Carlos Simões, as lições não o preocupavam demasiadamente. Era, então, aluno semi-interno.
No ano lectivo de 1917-18 frequenta o 1.º ano no Liceu de Martins Sarmento. Não tinha ainda 11 anos e, vencendo todas as dificuldades e oposições, funda um quinzenário «Defensor da Causa Sidonista»: o 5 de Dezembro, cujo primeiro número data de 22 de agosto de 1918 e o último de 12 de janeiro de 1919, pouco depois do assassinato de Sidónio Pais.
De acordo com o testemunho do P. José Carlos Simões, foi «ainda estudante em Guimarães que ensaiou os primeiros voos na poesia». Porém, datam de 1920 os mais antigos poemas manuscritos encontrados no espólio do poeta. E um testemunho de Lopes Correia sugere que foi com doze anos, já em Lisboa, na convalescença de uma febre tifóide, que Guilherme de Faria escreveu os primeiros versos.
Foi em outubro de 1919 que a família se mudou para Lisboa, instalando-se num amplo e acolhedor 2.º andar do n.º 11 da Rua da Horta Seca, junto ao Largo de Camões, que correspondia a um andar do antigo palácio de Vanzeller.
No ano letivo de 1921-22, no Liceu Passos Manuel, teve como companheiros António Hartwich Nunes e João da Câmara. Foi nesse período que, com o conselho de Alfredo Pimenta, Guilherme de Faria preparou a edição de Poemas, o seu primeiro livro, que seria impresso em abril de 1922. Em outubro inscreveu-se no Liceu Pedro Nunes, onde conheceu Manuel de Castro e Joaquim Paço d’Arcos, que escreve o seguinte testemunho: Guilherme era — com 15 anos — «um rapaz extremamente precoce. De altura menos que meã, uma forte cabeleira negra, olhos muito negros e vivos por detrás de umas lentes fortes que não lhe ofuscavam, todavia, o brilho». E se em Guimarães as lições não o preocupavam demasiadamente, em Lisboa, como aluno, Guilherme «não prestava a menor atenção à matéria dos estudos nem fazia qualquer esforço para a fixar». Afirmado como poeta, desinteressara-se totalmente dos estudos e refugiava-se no Jardim da Estrela, onde recitava sonetos de Antero de Quental, poemas de Gomes Leal e poesias suas. «Trazia já uma grande bagagem literária e era ela, e o sonho indefinido, que lhe povoavam a mente». Em novembro desse mesmo ano de 1922, Guilherme de Faria publica o seu segundo livro: Mais Poemas.
Esse é um período de intensas amizades, de empenhamento político na causa do Integralismo Lusitano e de importantes leituras que lhe permitirão evoluir de uma poesia muito influenciada pelo espectro romântico e simbolista — de poetas como Antero de Quental, António Nobre, Camilo Pessanha e Eugénio de Castro, entre outros — para uma poesia progressivamente mais próxima da estética neorromântica lusitanista, um lirismo de toada quinhentista, em diálogo com poetas como Afonso Lopes Vieira, António Correia d’Oliveira e José Bruges d’Oliveira.
No dia 4 de janeiro de 1929, Guilherme de Faria apanhou o comboio na Estação Ferroviária do Cais do Sodré. Tendo chegado a Cascais, remeteu dois bilhetes-postais para o irmão José; seguiu junto ao mar até à Cidadela e, depois, pela Estrada da Boca do Inferno. Foi um caminho sem retorno. Com apenas 21 anos de idade, Guilherme de Faria precipitou-se no mar. As fragas, a violência das vagas e a água fria reclamaram o seu corpo. Tendo recebido os bilhetes-postais com o carimbo de Cascais, José iniciou as buscas desde a Boca do Inferno, pela volta da Guia, até à Praia do Peixe, em cujo areal o corpo de Guilherme foi encontrado.
O que aconteceu entre o final de 1922 e o princípio de 1929 é verdadeiramente impressionante: depois de Poemas e Mais Poemas, Guilherme de Faria publica Sombra [1924], Saudade Minha e a plaqueta Oração a Santo António de Lisboa [1926], Destino e Manhã de Nevoeiro [1927]; postumamente, em 1929, serão publicados Desencanto e Saudade Minha (poesias escolhidas), antologia editada de acordo com as suas indicações.
Guilherme de Faria deixou organizada uma Antologia de Poesias Religiosas, que só seria publicada em 1947. Foi editor de Teixeira de Pascoaes e relacionou-se, com mais ou menos proximidade, com as principais figuras das letras e das artes do seu tempo: Raul Brandão, Fausto Guedes Teixeira, Teixeira de Pascoaes, Afonso Lopes Vieira, António Correia d’Oliveira, Alfredo Pimenta, Raul Leal, Luís de Almeida Braga, Carlos de Lemos, Vitoriano Braga, Mário Beirão, Mário Saa, Almada Negreiros, António Botto, José Bruges d’Oliveira, Anrique Paço d’Arcos e António Pedro, entre tantos outros.
Guilherme de Faria foi, em vários sentidos, desconcertante: fracassou nos estudos liceais, mas doutrinou-se com mestres como Afonso Lopes Vieira, António Sardinha e Mário Saa; foi um tradicionalista monárquico, amigo das principais figuras do Integralismo Lusitano, mas também da Renascença Portuguesa e da Geração de Orpheu.
Tudo o que na sua biografia é susceptível de ser relacionado com a sua idade resulta na evidência de uma precocidade impressionante: com apenas 11 anos, ainda em Guimarães, dirigiu um pequeno jornal quinzenário; com 17 anos editou quatro livros de Teixeira de Pascoaes; com 19 anos foi retratado por Almada Negreiros; com 21 anos deixou uma biblioteca extraordinária — com quase mil volumes — e uma obra poética singular que, no contexto do neorromantismo lusitanista, o integra na melhor tradição lírica e elegíaca da poesia portuguesa.
Mas Guilherme de Faria acabou por ser esquecido, particularmente devido à sua morte tão prematura, às especificidades quase anacrónicas da sua poesia e à proximidade ideológica ao Integralismo Lusitano. É a sua vida e a sua obra que pretendemos resgatar dos escombros de nove décadas de esquecimento; é a sua vida e obra que pretendemos devolver à história da literatura portuguesa.
José Rui Teixeira | 2021