Em 1964, no 35.º aniversário da morte de Guilherme de Faria, João da Câmara apresenta na RTP, no programa de David Mourão Ferreira — ‘Hospital das Letras’ —, este admirável testemunho:
“Conheci Guilherme de Faria nos bancos da escola. Com ele convivi intimamente, como se fôssemos irmãos, durante os poucos anos que passaram desde que entrou para o liceu, até àquele dia em que a morte o levou em plena juventude.
Com 13 anos apenas, o Guilherme, gesticulando largamente, empoleirado num dos marcos de pedra da cerca do liceu, recitava com voz forte, máscula, pouco natural em rapaz da sua idade, os seus primeiros versos. Cedo impôs, a todos nós, a sua superioridade indiscutível. Inteligente, irrequieto, vivendo permanentemente em exaltação de espírito, Guilherme de Faria procurava entre os amigos e companheiros aqueles que mais facilmente pudessem compreender ou sentir os seus poemas de amor e de saudade. […]
Seria para nós um mistério que um rapaz da nossa idade, naturalmente alegre, sempre disposto a rir e gracejar, pensasse assim. Mas o Guilherme era Poeta e a um Poeta tudo é permitido.
Aquele Amor manteve-se em saudade até ao fim da vida.
Numa noite — noite alta e escura — o Guilherme e eu conversávamos no jardim do Alto de Santa Catarina. Havia ali, apenas, um bico de gás. O Guilherme via mal e, com aquela luz fraca, não podia escrever. A ‘Canção’ que ele teve a amizade de me dedicar no seu livro Saudade Minha, escrevi-a eu .
‘A noite é escura e deserta,
E o céu nublado e sombrio…
E, pela noite deserta,
Tenho frio.
Já tive sonhos e amores!
Mas, nesta noite, indiferente
A sonhos, mágoas e amores,
Tenho frio simplesmente.
Tenho frio, e já não quero
Nem sei sofrer, ou chorar;
Se é vão o meu desespero,
Quero dormir e sonhar!
Oh noite imensa e tão escura,
Adormece a minha dor
Na infinita desventura
De mais um sonho de amor!’
A ‘Balada do fim do mundo’ foi escrita numa tarde de Verão. O céu aparecera, de repente, intensamente vermelho. Parecia que um fogo imenso se encaminhava para a Terra. Alguém, perto de nós, gritou: ‘Vai acabar o mundo!’. Estávamos, nessa altura, no Chiado. O Guilherme, possuído de uma exaltação que até aí nunca lhe conhecera, disse-me apenas: ‘Vem comigo!’. E desatou a correr como um louco a caminho de casa, que era na Rua da Horta Seca. Segui-o, claro, e ambos subimos a correr os degraus da escada até ao segundo andar. Sentado à secretária, ofegante, o Guilherme lançou ao papel, sem hesitações nem emendas a ‘Balada do fim do mundo’.
Alguns poemas do Guilherme de Faria foram musicados pelo nosso comum amigo Afonso Correia Leite. Que saudades sinto dessas noites de verdadeiro convívio, convívio admirável, na minha casa — noites que se prolongavam até altas horas da madrugada — assistindo ao nascimento de obras-primas verdadeiras, de um grande músico sobre versos de um grande poeta.
Um dia saí de Lisboa com um grupo de amigos, para passar três ou quatro dias a caçar no Ribatejo. Quando voltei, ao chegar a casa, a minha mãe deu-me a triste notícia. Nunca mais veria o meu querido amigo Guilherme de Faria. O mar, aquele mar que ele cantara em poemas maravilhosos, quisera-o para si. Tomado pela dor quis, logo a seguir, matar saudades dele. Reli os versos, muitos deles inéditos, que eu possuía, manuscritos. Só então dei conta que havia certas palavras que ele escrevia sempre com letra maiúscula: Mãe, Amor, Saudade, Mar e Morte. Teria eu conhecido bem, na verdade, o meu amigo? Creio que não. Doutra maneira eu teria, talvez, razões para esperar aquele fim trágico do Poeta, com pouco mais de 20 anos.”
José Rui Teixeira | 2018