O espólio de Guilherme de Faria é constituído por centenas de documentos, entre os quais se destacam poemários, epistolários, fotografias e livros da sua biblioteca pessoal. Trata-se de um conjunto de acervos de diferentes proveniências, reunidos desde 2006.


I. | FAMÍLIA LEITE DE FARIA

A família de Guilherme de Faria mudou-se em outubro de 1919 para Lisboa, instalando-se num amplo e acolhedor 2.º andar do n.º 11 da Rua da Horta Seca, junto ao Largo de Camões. Quando o poeta morreu, no princípio de 1929, os seus documentos permaneceram no escritório da casa da Rua da Horta Seca: poemas manuscritos autógrafos e centenas de cartas, assim como os mais de novecentos livros da sua biblioteca pessoal.
Miguel Leite de Faria, irmão do poeta, herdou parte significativa dessa biblioteca.
Algumas das cartas do espólio, particularmente de alguns autores com significativo reconhecimento histórico-cultural, foram vendidas nos anos 70 a um livreiro/antiquário da Rua do Alecrim. Em 2006, octogenário e visivelmente doente, Américo Francisco Marques não se lembrava de pormenores, mas assegurou-me que teve pelo menos uma carta de Fernando Pessoa. Foi possível recuperar quase noventa dessas cartas, dois terços das quais remetidas a Guilherme de Faria pelo poeta Fausto Guedes Teixeira. Ter-se-ão disperso dezenas de documentos de autores como Teixeira de Pascoaes, Afonso Lopes Vieira, António Correia d’Oliveira, Raul Leal, Mário Beirão e António Botto, entre outros.
Na casa da Rua da Horta Seca, permaneceram importantes epistolários e outros manuscritos autógrafos de autores como Almada Negreiros, José Bruges d’Oliveira e António Pedro. Entre outros documentos [fotografias e desenhos], um extraordinário acervo de mais de duzentos poemas manuscritos autógrafos de Guilherme de Faria, dos quais mais de 120 inéditos.
Este poemário, juntamente com outros importantes documentos — como é o caso dos manuscritos de preparação da edição da antologia Saudade Minha (poesias escolhidas) [1929] e dos bilhetes-postais com as últimas palavras do poeta —, encontrava-se na posse do seu irmão Frei Francisco Leite de Faria, da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos. Tendo morrido em 1995, essa parte do espólio conservou-se na Biblioteca Provincial, na Fraternidade do Amial, no Porto.
Em 2006, a irmã do poeta, Teresa Leite de Faria, confiou-me o espólio que ainda se encontrava no escritório da casa da Rua da Horta Seca, fundamentalmente constituído por cartas e fotografias. Em 2009, Frei António da Silva Martins [então Ministro Provincial da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos] confiou-me a parte do espólio que se encontrava na Biblioteca Provincial, fundamentalmente constituído por poemas manuscritos autógrafos de Guilherme de Faria. Ainda do acervo original da casa da Rua da Horta Seca, importa referir os livros que me foram confiados por Gonçalo Leite de Faria [filho de Miguel] e por Pedro Leite de Faria [neto de António, o irmão mais velho do poeta].
Desse espólio foi possível recuperar cerca de 10% dos livros da biblioteca e é provável que as cartas readquiridas constituam um terço do epistolário vendido na década de 70.

II. | ANTÓNIO HARTWICH NUNES

Foi no ano letivo de 1921-22, no Liceu Passos Manuel, que Guilherme de Faria e António Hartwich Nunes [1905-1966] se conheceram. A amizade está documentada num extraordinário espólio com mais de duzentos documentos, fundamentalmente constituído por cartas e poemas manuscritos autógrafos. Esse espólio foi-me confiado em 2007 por Eduardo Hartwich Nunes, filho de António Hartwich Nunes.
Para além de 135 documentos de Guilherme de Faria, esse acervo conserva mais de quarenta cartas que lhe foram remetidas por António Hartwich Nunes [seria expectável encontrá-las no espólio da casa da Rua da Horta Seca, onde se encontram apenas dez cartas deste amigo do poeta]. Além deste epistolário [que contém inúmeros poemas] e de outros importantes documentos manuscritos autógrafos de Guilherme de Faria [como é o caso de um manifesto monárquico datado de outubro de 1922], este espólio conserva ainda fotografias e uma pintura que retrata o poeta da autoria de António Hartwich Nunes.

III. JOAQUIM PAÇO D’ARCOS

Foi no ano letivo de 1922-23, no Liceu Pedro Nunes, que Guilherme de Faria e Joaquim Paço d’Arcos [1908-1979] se conheceram. O poeta acabou por ser mais próximo de Henrique [Anrique] do que de Joaquim Paço d’Arcos, pelos motivos que este explica a Luís Forjaz Trigueiros, numa carta de 16 de outubro de 1968: «Troquei, porém, o liceu pelo Banco Inglês e o Guilherme também não concluiu o 5.º ano. Algum tempo decorrido fui para África, voltei dois anos depois de Moçambique para partir em seguida para o Brasil e foi lá que me surpreendeu, em janeiro de 29, a notícia do suicídio do Guilherme».
Por ter sido convidado pela Câmara Municipal de Guimarães para pronunciar uma conferência sobre o poeta, no contexto do cinquentenário da sua morte, Joaquim Paço d’Arcos reencontra Manuel de Castro [companheiro da turma do 5.º ano do Liceu Pedro Nunes] e pede-lhe as cartas de Guilherme de Faria [epistolário só comparável ao de António Hartwich Nunes]. Tendo mandado dactilografar epistolário e rebuscado memórias com quase cinquenta anos, Joaquim Paço d’Arcos escreve ‘Destino e Obra do Poeta Guilherme de Faria’.
Como as cartas que Guilherme de Faria escreveu a Manuel de Castro não foram ainda encontradas, é o espólio de Joaquim Paço d’Arcos que conserva esse epistolário dactilografado, assim como outros documentos que lhe permitiram escrever a notável conferência de 1970. O seu filho — João Filipe Corrêa da Silva — confiou-me esse acervo em 2008.


Imagens: três manuscritos autógrafos do espólio da família Leite de Faria.
1. Carta que Guilherme de Faria escreve ao seu pai [António Baptista Leite de Faria], no dia 20 de março de 1919, quando era aluno interno da Escola Académica, em Guimarães. Trata-se do mais antigo manuscrito autógrafo de Guilherme de Faria conhecido. 2. Manuscrito autógrafo de Almada Negreiros: «Moi-même, pour revenir à mes plus pures pensées, j’ai du faire maintes fois des tours ignobles». Documento provavelmente de 1926 ou 1927. 3. Poema inédito de Guilherme de Faria: “Existir é padecer/ (Que tristeza indefinida!)/ Quem me dera a mim morrer!/ Vida é morte e morte é vida!”. Poema que, como o poeta indica, foi escrito no outono de 1920: «À hora do crepúsculo do dia 13 de novembro».


Na sequência do trabalho desenvolvido em torno do espólio de Guilherme de Faria, foram-me confiados outros dois importantes acervos literários: de José Bruges d’Oliveira [1899-1952], cedido pelo sobrinho António Bruges d’Oliveira em 2014, e de António Hartwich Nunes [1905-1966], cedido pelo filho Eduardo Hartwich Nunes em 2017.


José Rui Teixeira | 2021