No dia 7 de Janeiro de 1927, Guilherme de Faria publica ‘Destino’. Para a epígrafe deste seu 5.º livro, Guilherme de Faria escolheu os versos de Crisfal: “Sempre será meu amor/ Como a sombra, enquanto eu for:/ Quanto vai sendo mais tarde,/ Tanto vai sendo maior”. Nesta toada principia este livro, na sequência de ‘Saudade Minha’, com cantigas e vilancetes, expressivas reminiscências dos Cancioneiros.
Guilherme de Faria revelou, desde a edição de ‘Poemas’, um lirismo impregnado de tristeza, assinalado por uma morbidez de inspiração simbolista e por uma imagética outonal, crepuscular e marítima; introduziu nos seus poemas fragmentos do imaginário poético de Antero de Quental, Gomes Leal, Cesário Verde, António Nobre, Camilo Pessanha, Eugénio de Castro; escolheu um tom elegíaco e noturno para a sua poesia, habitada pela saudade na sua expressão ontológica e soteriológica, e coloriu a sua obra com um sebastianismo de inspiração integralista. Em ‘Destino’, Guilherme de Faria — íntimo de saudosistas e modernistas — assume plenamente uma expressão neorromântica lusitanista, mais próximo de Afonso Lopes Vieira e António Correia d’Oliveira, um lirismo de matiz quinhentista, inspirado no ‘Cancioneiro Geral’ de Garcia de Resende, e a condição de trovador.
Assim se explica que em ‘Cântico’, num livro publicado em 1927 por um poeta de dezanove anos, se possa ler: “Não entendeis meu amor,/ E só por vós, vida minha,/ Não vai minha alma sozinha/ Pelo mundo, em sua dor”. O mesmo tom persiste na ‘Canção das lembranças de amor’ ou na ‘Cantiga da saudade’, onde se lê: “E, no silêncio profundo,/ Sobem ao céu minhas trovas/ E a tudo eu falo, na dor/ Desta ausência, à noite, ao mundo,/ Aos astros e seu esplendor:/ – Dizei-me se sabeis novas,/ Ai novas do meu Amor?”.
Tal como em ‘Saudade Minha’, encontramos em ‘Destino’ um amor condescendente com a ausência e a distância, comprazido na saudade, que se exprime numa vaga esperança, como em ‘Carta perdida’ ou ‘Cantiga’:
“Olhos que me olhais a mim,
Que me estais enlouquecendo
De amor por vós, em vos vendo…
Nos longes tempos em que era
Ainda moço e menino,
Tive um sonho peregrino;
E, na graça de quimera
Desse sonho que eu criara,
Corria-me a infância assim
Leda como vós, e clara,
Olhos que me olhais a mim.
Era-me a vida suave
E tão formosa a sonhava
Que, nem por sombras, cuidava
Que em seu bem fosse mudave;
E via em tudo a luz pura
Que eu sonhava e que era assim
Como a luz que em vós fulgura
Olhos que me olhais a mim.
Mas, depois… depois — nem sei!
Com o tempo os sonhos voaram
E sozinho me deixaram!
Quando, sozinho, acordei,
Só, de longe, na lembrança,
Uma luz brilhava assim
Como em vós, de pura esperança,
Olhos que me olhais a mim.
Só quando vi, com espanto,
Nos vossos olhos, Senhora,
A luz do sonho de outrora,
Que eu amara tanto e tanto,
Entendi o meu amor
Que por vós era sem fim,
E é maior, sempre maior,
Pois que me olhastes a mim”.
Em ‘Olhos cegos’ ou em ‘Canção’, encontramos o mesmo leitmotiv, a mesma tendência para a melopeia, para a lírica de inspiração medieval e renascentista, para o espasmo amoroso e para uma saudade trágica, inusitada. Nesse sentido, o poema ‘Última graça’ pode ser interpretado como um presságio:
“E oh pura graça da minha alma triste,
Oh sempre amada e linda, se eu morrer
Longe, lembra a paixão que sempre viste,
Por ti, nestes meus olhos, a esplender.
E vai, lembrança enternecida e bela,
Vai e procura pelo céu ideal
O lume brando duma nova estrela
Alvorecendo sobre Portugal…”.
Passados mais de 80 anos sobre o suicídio de Guilherme de Faria, podemos imaginar o modo como, nesse contexto, Emília Castro terá lido este poema ou ‘Carta a uma estrangeira’, onde se escuta a profissão de fé num amor que se tornara para Guilherme de Faria uma obsessão poética, configuradora da própria condição de poeta romântico:
“Pois não entendereis esta alma inquieta,
Que eu, por graça de Deus, sou Português:
Vendo este céu, senti-me logo poeta
E, toda a vida, amei uma só vez.
Amei a flor mais nobre desta Raça
— Menina e Moça, um dia, aparecida,
Por milagre de Deus, cheia de graça,
A abençoar de amor a minha vida.
E assim eu vivo a amá-la; e é clara e linda
A minha vida, à luz do seu amor;
E amando-a sempre, amá-la mais ainda
É o meu ideal de perfeição maior”.
Estamos, evidentemente, muito próximos da formulação de António Nobre, em ‘Viagens na minha terra’: “Meu pobre Infante, em que cismavas/ Porque é que os olhos profundavas/ No Céu sem par do teu País?/ Ias, talvez, moço troveiro,/ A cismar num amor primeiro:/ Por primeiro, logo infeliz…”.
Na terceira parte de Destino — intitulada ‘Saudades de Portugal’ —, uma epígrafe de Camões [“Esta é a ditosa pátria minha amada”] introduz um conjunto de poemas de carácter fundamentalmente nacionalista.
‘Nesta austera, apagada e vil tristeza…’ é um poema que lamenta a condição de exílio, de desterro. Para Guilherme de Faria, os portugueses vivem simbolicamente desterrados de Portugal, do seu passado histórico glorioso concebido mitologicamente, esses “Sonhos bons d’outrora” donde irrompe a voz da saudade, voz que “Vem dos Cancioneiros, […] Voz saudosa e linda/ Da canção de Inês”, que “é a voz do Encoberto”: “Voz de Deus, sagrando/ A alma de Camões!//
Voz que ao céu subiste,
Num sonho imortal,
Da alma pura e triste
Do pastor Crisfal!
Voz de Bernardim
E Soror Mariana!
Oh, tristeza humana
A chorar, sem fim…
Frio desespero,
E êxtase dos céus:
Voz de Santo Antero,
Voz de João de Deus!
Voz de ledo encanto,
Voz de sonho ideal,
Voz desfeita em pranto,
Voz de Portugal!”.
Neste contexto, Guilherme de Faria assume um tom profético: “Ah, Canção, desperta/ Do letargo fundo,/ A graça encoberta/ Que doirou o mundo!”. É nesse sentido mais perceptível o poema sebastianista ‘El-Rei’: “Vem a nós, Rei peregrino,/ […] Senhor do nosso Destino,/ Capitão de Portugal!”. Ou ‘Endechas ao mar português’, um longo poema em que Guilherme de Faria retoma um passadismo nostálgico: “Só a voz, perdida/ A chorar, segreda/ Lembranças da vida/ Passada, e mais leda// Da verde planura,/ E a vaga distância,/ A voz remurmura/ Saudades da infância”.
Em ‘O fado’, encontramos um imaginário típico que é, desde o século XIX, entendido como a alma do povo português, um elemento estrutural da nossa cultura e uma marca indelével da paisagem psicológica de Lisboa: os fadistas trajados de negro, como que enlutados, o silêncio da noite, um certo mistério híbrido e orgânico, simultaneamente castiço e exótico, ou o sentimento de que as guitarras choram, enquanto a poesia evoca a saudade, o passado, o amor distante e ausente, a noite, as sombras, o destino, as misérias da nossa condição. O fado e a poesia de Guilherme de Faria partilham fundamentalmente os mesmos núcleos temáticos, a mesma tradição cultural e poética, o mesmo Bairro Alto:
“Assim, à noite, escutando,
Entre guitarras plangendo,
A voz do fado subindo,
O Povo, triste e sonhando,
Vai seu mal adormecendo,
Num sonho distante e lindo…”.
Numa experiência onírica, em ‘Canção’ ou no soneto ‘Destino português’, aparece a saudade como reminiscência, um canto vago ou as vozes do passado:
“Quem sois, oh vozes de encanto,
Da escura noite subindo
Aos astros que, em doce espanto,
Se quedam todos ouvindo?
E as vozes sobem mais alto,
E o mistério se desvenda;
E em pura glória me exalto,
Ouvindo as vozes da Lenda!
— Ao longe, nos Cancioneiros,
A voz del-rei trovador…
Oiço cantar os troveiros
Cantares de gesta e de amor!
[…]
E oiço a voz de D. Dinis
Na bruma do seu pinhal;
Oiço avenas pastoris
De Bernardim e Crisfal…
E a branda voz, tão formosa,
Subindo em trovas, canções,
— Fúria grande e sonorosa
Na Epopeia de Camões —;
Esta canção que não finda,
Que foi prece, alta ventura,
Dor e pranto tanta vez,
Rasgando as sombras, ainda
Vem beijar, saudosa e pura,
O meu sonho português!”.
‘Alma triste’ é, talvez, a parte mais impressiva de ‘Destino’, seja pelo desengano incontido, pela beleza formal das composições, pela intensidade dramática dos seus conteúdos ou pela perturbadora consciência da sua condição. Em ‘Canção peregrina’ e em ‘Noite alta’ assomam a solidão e o cansaço, a condição de peregrino/desterrado, a perda da infância, a expressão comovida da tristeza e do amor, uma certa nostalgia crepuscular como pressentimento do fim: “Vai, sombra perdida,/ Pois que a minha sorte/ Foi sonhar a vida/ E acordar na morte”.
Num poema intitulado ‘Desolação’, Guilherme de Faria escreve:
“Oh Morte escura, nesta ansiedade,
Tão só no mundo, já sem o abrigo,
Dum vago sonho, duma saudade,
Sonho contigo.
Cheio de mágoas, apenas vejo
Mágoas e luto, por toda a parte…
— Ah, vem, oh morte, que, assim, desejo
Talvez, amar-te.
Vem! — que o meu sonho de primavera,
O amor, a graça que o céu me deu,
Em fria cinza de vã quimera,
Tudo morreu!
Ai, vida minha, luz dos meus olhos,
Não mais te quero sonhar, nem ver!
E vem, oh Morte, fechar-me os olhos,
Para esquecer”.
Este livro, impresso no princípio de 1927, termina com ‘Fogo do lar’, um longo poema em que Guilherme de Faria se retrata como peregrino, o desterrado que se recolhe junto à lareira e enfim descansa das agruras do caminho e se protege do frio e das trevas noturnas. A lareira, como um lenitivo, traz a memória saudosa do amor e o consolo da presença de Deus.
ÍNDICE
MENINA E MOÇA
[1] Menina e moça [pp. 11-14]
[2] Canção das lembranças de amor [pp. 15-17]
[3] Cantiga de saudade [pp. 19-20]
[4] Carta perdida [pp. 21-23]
[5] Cantiga [pp. 25-27]
[6] Olhos cegos [pp. 29-31]
[7] Canção [pp. 33-35]
[8] Última graça [pp. 37-38]
CARTA A UMA ESTRANGEIRA
[9] Carta a uma estrangeira [pp. 41-44]
SAUDADES DE PORTUGAL
[10] Nesta austera, apagada e vil tristeza [pp. 47-54]
[11] El-Rei [pp. 55-56]
[12] Endechas ao mar português [pp. 57-62]
[13] O fado [pp. 63-65]
[14] Canção [pp. 67-69]
[15] Destino Português [pp. 71-72]
ALMA TRISTE
[16] Canção peregrina [pp. 75-77]
[17] Noite alta [pp. 79-80]
[18] Desolação [pp. 81-82]
ETERNIDADE
[19] Fogo do lar [pp. 85-90]
Livro com 96 páginas e 19 poemas apresentados em cinco partes: ‘Menina e moça’, ‘Carta a uma estrangeira’, ‘Saudades de Portugal’, ‘Alma triste’ e ‘Eternidade’. Formato: 12 x 18 cm. “Acabou-se de imprimir este livro, aos sete de Janeiro de mil novecentos e vinte e sete, nas oficinas gráficas da Biblioteca Nacional de Lisboa”.
IMAGENS: capa de ‘Saudade Minha’ e autógrafos de Guilherme de Faria.
José Rui Teixeira | 2019